domingo, 22 de janeiro de 2012

A coragem de se encontrar




Quando Moisés se aproxima do faraó para pedir-lhe que liberte seu povo, o faraó do Egito faz-lhe um desafio:
“Mostre-me algo que TE surpreenda.”
Os rabinos logo perguntaram:
Não deveria ser: “Mostre-me algo com que EU me surpreenda?”
E logo respondem, esclarecendo que o faraó era homem muito esperto e vivido e que sua pergunta era correta. Se Moisés é alguém que deve ser respeitado, tem de mostrar que é alguém que se surpreende, e não alguém que surpreende os outros.

            Vivemos num século onde muitas mudanças aconteceram, desde os avanços na tecnologia até a forma de nos relacionarmos. Mas será que a nossa forma de ver e viver o mundo acompanha as mudanças? É pertinente e coerente com nossas conquistas? Ainda hoje nos vemos tendo que escolher entre ser e ter. Questão tão discutida que se tornou cansativa, uma batalha sem fim. Não seria muito mais prazeroso aceitar que podemos ser e ter, sem culpas homéricas? Afinal, o “ter” faz parte da constituição do ser humano e não significa ser pobre de espírito, de valores, de cuidado e preocupação com os outros e com o mundo. Aceitar essa dualidade, que somos corpo e alma, que temos infinitas possibilidades, vai nos levar a tão desejada liberdade. Romper esses preconceitos, permitir-se trair a tradição em prol de uma fidelidade para consigo mesmo. Por mais que tenhamos mais liberdade de expressão hoje do que antigamente, ainda nos preocupamos muito com o que o outro vai pensar. Sem dúvida, “o traidor”, a pessoa que rompe, muitas vezes é tido como “fraco”, quando o que a sua atitude menos representa é a “fraqueza”.  É preciso muita coragem para trair, para romper. Porque quem o faz se expõe e causa indignação nas pessoas que não possuem esta mesma coragem. O que afeta essas pessoas é o fato de serem conduzidas a profundezas da intimidade que desejam evitar, questões próprias que são, durante boa parte da vida, escanteadas e colocadas embaixo do tapete.
            Deixar suas crenças e seu passado em nome de um futuro é para poucos. Tendemos a repetir e a seguir os padrões que nos foram transmitidos. Nossos pais, nossas experiências, tudo o que nos oferecem “certeza”, além do medo do desconhecido, apontam o que é “correto” como sendo o “bom” por definição, nos determinando um destino. A proposta da imutabilidade é mais do que indecorosa, nos diz Nilton Bonder; ela violenta o indivíduo. Ela nos propõe que continuemos fazendo o que já foi feito no passado. Quantas vezes ouvimos ou sofremos ao ouvir nossos pais dizerem: “Eu tive de viver tal e tal condição... por que você não pode passar por isso?” Isto é expresso como um conceito educacional em que, com certeza, o passado é determinador do que é certo e bom. Um filho que rompe, que não tem a profissão do pai, que não segue as expectativas e a cartilha definida pela tradição familiar é visto como um “sem juízo”, como alguém que está perdido e fora do prumo, a “ovelha negra”.
            Nem sempre é fácil aceitar, admitir e principalmente ter coragem para sair do lugar comum que um dia serviu para o nosso desenvolvimento e crescimento, porém se tornaram ultrapassados, distantes do que almejamos para nossa vida. Quando decidimos sair desse lugar que não nos identificamos mais, aparecem centenas de dúvidas, os medos florescem, a culpa vem à tona. E para onde ir se conhecemos apenas aquele lugar? Aparentemente isto parece tão difícil e intransponível. E então experimentamos a mais temida das sensações – o pânico de se extinguir. Nesse momento pensamos em voltar, nos autossabotamos. Mas, como disse Albert Einsten, “A mente que se abre a uma nova ideia jamais voltará ao seu tamanho original”.
            Por isso, se escolhermos seguir em frente, esse profundo ato de confiança em nós mesmos e no processo da vida garante a passagem pelo vazio que magicamente se concretiza em chão sob os nossos pés. O que não existia passa a existir e um novo lugar se faz acessível. Passar por um processo de mutação é permitir-se surpreender. É se descobrir. E, nessa trajetória, a “mesmice” muitas vezes é o caminho mais curto, o mais simples, mas também o que tem os custos mais elevados. Ir pelo caminho mais simples e mais curto é uma lei evolucionista. Automaticamente. pelo hábito, nos movemos na direção mais imediata e curta. No nosso dia-a-dia, sabemos muito bem quais são os caminhos mais curtos e quais são os mais longos. Fazemos também nossas opções por padrões que optam pelo curto. Mas nossos mecanismos de detectar se são “curtos longos” ou “longos curtos” existem e sempre estão aí para apontar novos inícios, por exemplo, de relações de trabalho, amor e amizade.
            Segundo Nilton Bonder aquele que engana a si mesmo é mais perverso do que o que engana os outros. Isso porque aquele que engana os outros está muito próximo de cair em si do que aquele que engana a si mesmo. Pense em quantas vezes você se sabotou hoje em prol de padrões, da tradição e do seu medo? É difícil aceitar o encontro consigo. Nem todos estão preparados para se ver e para conviver com uma nova maneira de ser para si mesmo. Quantas vezes você se permitiu “horrorizar”? O rabi Nahum declarou: “Temo muito mais as boas ações que me acomodam do que as más ações que me horrorizam!”. A experiência humana é marcada pela alternância de estados despertos e de torpor. Se “horrorizar” é um dos sinais de percepção do lugar comum. Quem não se horroriza perde a capacidade de detectar algo além. Nossa insensibilidade se beneficia daquilo que não rompe, das ditas “boas ações” que não ferem os códigos morais. Cada vez que fazemos o esperado, reforçamos um padrão automático de torpor. Isso porque existe em nós uma tendência de querer agradar aos outros e à moral da nossa cultura. Despertamos quando conseguimos enxergar situações horríveis em nossa vida, tanto no plano particular como no social e cultural. Do horror surge uma nova forma de ser, de existir, uma nova forma de família, de tradição, etc.
Aqueles que se permitem sair do lugar comum, que quando se sentem distantes do que são mudam de emprego, refazem relações amorosas, abandonam os vícios, perdem os medos, se libertam, encontram sempre alguém com quem compartilhar esse novo local. Já o acomodado terá para sempre o pânico da solidão.
Um ser humano se sente plenamente satisfeito quando consegue ser honesto consigo e com o outro. Quando consegue estar em dia com o que lhe é correto, com o que lhe é bom. Porém esse correto e esse bom precisam sempre ser revistos. Somos seres mutáveis e em busca de algo que não vamos encontrar se permanecermos agindo e conduzindo as coisas da mesma forma. Nós somos capazes de construir e reconstruir, a cada instante, em busca do que é melhor. Todos os dias, temos a oportunidade para mudar o curso da nossa vida. Dar a volta e encontrar novas possibilidades, novos lugares, novos amores, novos “bons”. Surpreenda-se! Surpreender-se é a maior prova de poder de um ser humano. Surpreender os outros é fazer uso dos nossos truques já dominados; surpreender a si mesmo é ser um mago diante daquilo que nós julgávamos ser.
            O heroi de hoje é aquele que consegue sentir e seguir sua alma. É aquele que surpreende a si mesmo e seus poderes são tudo aquilo que ainda não foi feito, dito, visto, falado ou escutado. O futuro e a não-convencionalidade são o instrumento de poder desse heroi. Trair a nós mesmos e nos surpreender conosco é algo único e de grande força. As surpresas do relativo, das misturas, dos erros, das espontaneidades, fortalecem a alma e lhe fornecem seus nutrientes mais importantes: a evolução e a libertação. 

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