sábado, 4 de fevereiro de 2012

O olhar do outro como parte da construção do meu ser




O que faz a vida ser vida é a possibilidade que temos de transformação, de podermos estar sendo a cada dia, nos construindo. Um dos fundamentos do existencialismo é de que a “existência precede a essência”. O que significa dizer que, num primeiro momento, o homem existe, encontra a si mesmo, surge no mundo e só posteriormente se define. Seremos aquilo que fizermos de nós mesmos. Segundo Jean Paul Sartre, o homem é tão-somente, não apenas como ele se concebe, mas também como ele se quer; como ele se concebe após a existência, como ele se quer após esse impulso para a existência. O homem nada mais é do que aquilo que ele faz de si mesmo: é esse é o primeiro princípio do existencialismo. Sendo assim, somos responsáveis pela nossa existência. Somos fruto das nossas escolhas, conscientes ou não.
Segundo o existencialismo dizer que o homem é responsável por si mesmo é também dizer que ele é responsável por todos os homens. Escolher ser isto ou aquilo é afirmar, concomitantemente, o valor do que estamos escolhendo. O meu querer não forma apenas quem eu quero ser, mas reflete em toda a sociedade, no meio que eu vivo, nas pessoas que eu amo.  Iremos sempre procurar escolher o bem para nós mesmos e nada pode ser bom para nós sem o ser para todos. Sempre que escolho algo, escolho para mim e para os outros e isso me gera a angústia de saber que sou responsável também pelos outros. Por isso, o existencialismo diz que o homem é angústia. Como nos diz Sartre o homem que se engaja e que tem consciência de que ele não é apenas aquele que ele escolheu ser, mas também um legislador que escolhe simultaneamente a si mesmo e a humanidade, não tem como escapar deste sentimento de profunda responsabilidade. O homem então se vê em conflito com seus sentimentos.
Segundo Thana Mara de Souza além de mostrar tão bem como o homem se vê perdido em sua época, Sartre revela em seus romances outra questão essencial: a revolta em relação ao que chama de “moral burguesa”, que nos obriga a agir de determinado modo e estabelece o que é certo e o que é errado. Nesta moral burguesa tudo se encaixa perfeitamente – somos quem podemos ser – somos o que a sociedade nos permiti ser. Dentro dessa moral, qualquer ato serve para nos enquadrar em estereótipos: esse é inteligente, aquele é rebelde, aquele outro é normal, aquele outro é louco. Com base nessas classificações somos rotulados: se eu sou “rebelde” tudo que eu faço deve ser criticado e condenado pelo fato de eu ser rebelde; ao contrário se eu for “inteligente”, todos os meus atos devem ser inteligentes, e se algum não for a censura é imensa.
Sartre critica essa moral que pretende aprisionar o homem em definições e tirar sua liberdade. Diz que essa liberdade implica responsabilidade, pois se somos livres para escolher o que queremos ser, devemos assumir essa escolha, não temos como negarmos essa liberdade e fingirmos não ser responsáveis, embora seja mais confortável fazer isso.
Se eu utilizo deste pretexto de que a sociedade funciona desta forma e não posso querer ser diferente do meu grupo segundo Sartre eu uso de má-fé. Na sua obra O Ser e o Nada, há alguns trechos onde Sartre exemplifica o que ele chama de má-fé, por exemplo, a história dos dois jovens que caminham pela rua e o rapaz paquera a moça, em dado momento ele pega a mão dela e ela não sabe exatamente o que fazer: se retira a mão e recusa o rapaz de quem gosta ou deixa a mão e aceita as consequências desse ato. Ela escolhe fazer os dois e nenhum dos dois: deixa o rapaz segurar sua mão como se isso não significasse nada, como se isso não quisesse dizer que estava interessada. Desse modo, a moça pensa ter uma desculpa caso o rapaz deseje insistir mais: o que ela quer dizer para ele é que permitiu que ele segurasse sua mão, mas ao mesmo tempo não quis assumir a consequência do seu ato.
Embora o homem não seja um efeito, um resultado, um produto da história, da política, seja o que for nada existe pelo e para o homem, nenhum sistema, nenhuma política, nem história, nada o anula. Claro que Sartre reconhece que somos seres históricos e que a história nos modela, no entanto, afirma que nenhum sistema existe por si mesmo.
No livro de Sigmund Freud chamado Totem e Tabu fica claro a questão da formação da sociedade de suas regras, proibições, evitações e delimitações, por conta do Complexo de Édipo. Os dois tabus fundamentais – não matar o animal totêmico e não cometer incesto são a base da sociedade em que vivemos até os dias de hoje. Segundo Menezes, o horror ao incesto, por exemplo, tem uma função pedagógica, no sentido em que obrigava o homem primitivo a criar estratégia para evitar a violência que a expressão sem barreira de seus desejos provocariam não somente para a própria pessoa como também para os outros, sendo que a partir do momento que escolho para mim escolho para o outro. E lidar com as nossos desejos mais primitivos, com os limites e ao mesmo tempo saber que existe um outro que pode ser atingido pelas minhas escolhas gera a dolorida angústia de ser livre. Sendo assim eu posso escolher não fazer o que eu quero, pois como nos diz Freud existe uma ambivalência na atitude do homem – ele deseja e detesta aquilo que é proibido. A base do tabu seria uma ação proibida, embora existe no homem o desejo de violá-lo. Porém, muitas vezes o medo é mais forte do que o desejo, ou na visão sartreana a escolha pelo medo prevalece até por ter a consciência que eu faço parte de um todo e que irei sofrer as consequências do meu ato.
O homem é responsável pela sua história, pela história dos outros, do mundo. Ele é uma singularidade que filtra as determinações gerais da história e desta responsabilidade ele não pode abdicar, pois isso seria hipotecar a sua liberdade, seria agir de má-fé. Apesar de toda determinação histórica não há como abdicar da liberdade. Se nos abdicamos dela estamos abrindo mão do nosso ser. Isso é uma responsabilidade ética. Quem abre mão da sua liberdade comete uma traição a si próprio.
Vamos nos construindo, assim como o mundo a nossa volta, por meio das nossas ações. São elas que nos definem. Devemos nos comprometer com a nossa vida e entender que o que conta é a realidade. Os sonhos, as esperanças, as esperas só permitem que o homem se defina como um sonho malogrado, como esperanças abortadas, como esperas inúteis. Que ele se defina como algo no mundo das ideias, que ele se defina em negativo e não em positivo. Sartre diz que “somos nada mais do que nossa vida”, isso não implica que o artista seja julgado unicamente por suas obras de arte; mil outras coisas contribuem igualmente para defini-lo, ou seja, somos uma série de empreendimentos, a soma, a organização, o conjunto das realizações que constituem esses empreendimentos.
E a partir da nossa construção, da nossa realização do projeto de ser, vamos também descobrindo os outros como sendo a própria condição de sua existência. Só podemos ser alguma coisa, no sentido em que se diz que alguém é alegre, ciumento, bom ou mau, se os outros nos reconhecerem como tal. Para obter qualquer verdade sobre mim é necessário que eu considere o outro. Ele é indispensável à minha existência tanto quanto, aliás, ao conhecimento que tenho de mim mesmo. Minhas escolhas interferem no todo se pensarmos que estamos conectados, que toda ação tem uma reação por menor que seja. A nossa responsabilidade como seres humanos é muito maior do que poderíamos supor, pois minhas escolhas refletem no todo e engajam a humanidade inteira.

REFERÊNCIAS


BUENO, Isaque José.  Liberdade e ética em Jean-Paul Sartre. Rio Grande do Sul, 2007.117p. Dissertação apresentada como requisito para a obtenção do título de Mestre em Filosofia pelo Programa de Pós-graduação em Filosofia da Faculdade de Filosofia e Ciencias Humanas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Disponível em ˂http://tede.pucrs.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=832˃ Acesso em 12/11/2009.


BURDZINSKI, Júlio César. Má-fé e autenticidade: um breve estudo acerca dos fundamentos ontológicos da má-fé na obra de Jean Paul Sartre. Rio Grande do Sul, Editora UNIJUÍ, 1999.


PEREIRA, Deise Quintiliano. Sartre Fenomenológico. Revista psi. Estudos e pesquisas em psicologia, RJ, Ano 8, nº2, p. 277-288, 2008. Disponível em ˂ http://www.revispsi.uerj.br/v8n2/artigos/pdf/v8n2a12.pdf˃ Acesso em 12/11/2009.



MOUTINHO, Luiz Dammos Santos. Sartre: existencialismo e liberdade. São Paulo: Moderna, 1995.


SARTRE, Jean Paul. O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica. Tradução de Paulo Perdigão. 12ªed. Petrópolis: Vozes, 2003.


_______________ . O Existencialismo é um humanismo. Trad. Vergílio Ferreira. São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Os pensadores).

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