terça-feira, 22 de novembro de 2011

A compreensão de ser humano e de sociedade no Iluminismo

A filosofia moderna, ou seja, o pensamento filosófico da metade do século XV ao final do século XVIII, teve sua origem concomitantemente com o declínio do  pensamento escolástico, o qual se caracteriza por seu pluralismo (aceitação de uma pluralidade de entes e de graus de ser realmente diversos) e por seu personalismo (reconhecimento da primazia dos valores da pessoa humana), por uma concepção orgânica da realidade bem como pelo teocentrismo ou olhar dirigido para o Deus criador. Quanto ao método da escolástica, reduzia-se ele à análise lógica pormenorizada dos problemas particulares. A filosofia moderna atacou de frente todas estas características.
Resumindo, o panorama da fase de fundação filosofia moderna apresenta duas tendências que são o Racionalismo cartesiano, denominado pelo nome de seu fundador René Descartes, e o Empirismo baconiano, assim denominado em função ao seu implantador Francisco Bacon.
Descartes conseguiu criar um sistema da filosofia na modernidade, sendo por isso considerado o pai da filosofia moderna, embora tenha se apropriado mais da racionalidade do que da experiência.
Bacon e Descartes solidificaram duas tendências, que sempre existiram, mas que tomam feições novas. Uma das tendências valorizou a experiência, de onde veio o empirismo e posteriormente o positivismo. Outra, enfatizando a autonomia da razão, dali decorrendo o racionalismo radical, dispensando a experiência para a descoberta dos universais.
 O empirismo buscou valorizar a experiência, portanto, as relações extrínsecas, mais do que as noções meramente especulativas da razão. Esta maneira de pensar era inovadora, com raras manifestações na filosofia imediatamente anterior.
O racionalismo, de outra parte, - e que era o plano em que se situava Descartes, - também inovou, porque se radicalizou na subjetividade da inteligência. Em termos gerais, os antigos já eram racionalistas, porquanto admitiam a especulação a penetrar na forma intrínseca das coisas. O novo racionalismo afastou a importância do objetivo; não somente pensava objetos independentemente da experiência, mas ainda se concentrou no Eu como criador do objeto, quando não no todo, ao menos em parte.
A época moderna muito tem para diferenciar-se concretamente da anterior por causa do seu tempo político e por causa da personalidade dos seus filósofos que tinham como crença a perfectibilidade da natureza e da razão. Como, por exemplo, Leonardo de Vinci (1452-1519) que considerou a arte e a ciência como tendentes a um único escopo: o conhecimento da natureza. Segundo Nicola Abbagnano, para Leonardo Da Vinci arte e ciência assentam ambas em dois pilares de todo o conhecimento verdadeiro da natureza: a experiência sensível e o cálculo matemático. De fato, as artes, e em primeiro lugar a pintura, que Leonardo coloca acima de todas as artes, procuram nas coisas a proporção que as faz belas e pressupõem um estudo directo que procura descobrir nas coisas, mediante a experiência sensível, aquela mesma harmonia que a ciência exprime nas suas leis matemáticas. Ainda, segundo Nicola Abbaganano Leonardo exclui da pesquisa científica toda a autoridade e toda a especulação que não tenha o seu fundamento na experiência. "A sabedoria é filha da experiência" (ed. Richter, n. 1150). A experiência jamais engana; e os que se lamentam dos seus logros deveriam antes lamentar-se da sua ignorância porque pedem à experiência aquilo que está para lá dos seus limites. Em contrapartida, pode o juízo enganar-se sobre a experiência; e para evitar o erro não há outra via senão reduzir todos os juízos a cálculos matemáticos o servir-se exclusivamente da matemática para entender e demonstrar as razões das coisas que a experiência manifesta (Cod. atl., fol. 154 r). Entender a "razão" na natureza significa entender a "proporção" que não se encontra apenas nos números e nas medidas, mas também nos sons, nos pesos, nos tempos, nos espaços e em qualquer potência natural.
Com Imanuel Kant, a filosofia moderna sofreu novas profundas transformações. O filósofo é autor de um pequeno texto (Resposta a pergunta: O que é o esclarecimento?, datado de 1784) que representa uma das maiores contribuições ao entendimento do que seja o iluminismo. Kant explica que esclarecimento (Aufklãrung)[1] significa a saída do homem  de sua minoridade, pela qual ele próprio é responsável. A minoridade é a incapacidade de se servir de seu próprio entendimento sem a tutela de um outro. É a si próprio que se deve atribuir essa minoridade, uma vez que ela não resulta da falta de entendimento, mas da falta de resolução e de coragem necessárias para utilizar seu entendimento com a tutela do outro (p.1).
Para Kant, esclarecer, iluminar, será o meio para instituir o homem em sua plenitude, bem como a sociedade formada pelos homens. Se manter na minoridade, não assumir seus próprios atos, responsabilidades e o uso adequado da razão é tentador, colocando o homem no sedentarismo intelectual, que coloca no outro a responsabilidade de pensar por si. Segundo Daniel Pansarelli, Kant denuncia que a própria organização social, com suas instituições, por muitas vezes induz os sujeitos à renúncia de sua capacidade de raciocinar. Sendo difícil para um sujeito, tomado em sua individualidade, livrar-se da condição de minoridade intelectual, passando a fazer uso próprio da razão. Se é difícil para um sujeito esclarecer-se isoladamente, podemos entender que o Esclarecimento será, portanto, de um povo, pois não é possível chegar à maioridade individualmente, apenas no coletivo. Tem que se buscar o esclarecimento do povo, da sociedade que é composta por indivíduos.
Vemos então que o processo de racionalização, característico da Modernidade é compreendido por Kant como um processo que representava o curso natural da evolução da sociedade. O ser humano estava apto para raciocinar sobre sua própria razão, tematizando-a como objeto de reflexão filosófica.
Segundo Kant, a liberdade é condição para que a sociedade siga seu curso natural, rumo ao Esclarecimento, ou seja, o ser humano deve se desenvolver racionalmente, esclarecer-se, a tal ponto que sua própria vontade, livremente, seja desejosa daquilo que se apresenta como melhor para a sociedade. A vida em sociedade esclarecida será a vida moral, isto é, a vida regrada pelo bom uso da razão. Para que possa atingi-la, todavia, a razão deve ser plena liberdade, ou melhor, os indivíduos devem ter plena liberdade ao fazer uso público da sua razão. Entende-se uso público da razão como aquele que o intelectual faz, por escrito, ao elaborar suas idéias sobre os diversos temas da sociedade. O uso privado é o levado a risca pelo indivíduo no desempenho de sua função pessoal. Sendo assim, o livre uso público da razão é o próprio processo de Esclarecimento, processo este que segundo Kant e outros iluministas, levaria a sociedade ao seu pleno desenvolvimento.
Nas palavras de Kant, o Iluminismo marcou a “emergência do homem da imaturidade imposta a si mesmo”. Essa imaturidade consistia principalmente da subserviência do homem aos constragimentos das crenças religiosas. Todas as questões a respeito da natureza do universo, dos seres humanos e do lugar deles no cosmos deviam ser respondidas em termos de autoridade das Escrituras. O poder da Igreja, pelo menos na Europa Ocidental, era esmagador nessa época; cada aspecto da vida de uma pessoa era foco potencial de seu interesse e de sua ira. Ficar sob as garras das exigências da ortodoxia religiosa era correr o risco de detenção, tortura e morte.
Foi nesse contexto que pensadores como John Locke, na Inglaterra e Voltaire e Denis Diderot, na França, começaram a articular a mensagem do Iluminismo.
O Iluminismo foi um movimento intelectual que surgiu durante o século XVIII na Europa, e pregava maior liberdade econômica e política. Em termos mais amplos, a mensagem do Iluminismo afirmava que todos os seres humanos têm a capacidade de usar a razão de modo a pensar, atuar, resolver problemas, descobrir o mundo e progredir moralmente. E negava que a autoridade – quer de sacerdotes, dos textos sagrados ou da tradição da Igreja – pudesse, de alguma forma, ser a medida adequada para a verdade. A crença no potencial humano de esclarecer-se por meio do uso da razão diz respeito à noção de perfectibilidade humana. Acreditavam os Iluministas que o ser humano poderia desenvolver-se até atingir a perfeição, que será alcançada por meio da razão. Outra característica importante deste movimento é que esta possibilidade de esclarecer-se é algo passível de todos os seres humanos e não apenas de algumas elites.
Neste período François Marie Arouet, conhecido como Voltaire destacou-se pelas críticas ao clero católico, à intolerância religiosa e à prepotência dos poderosos. Popularizou o conhecimento filosófico por meio de um grande número de contos para que chegassem a outras camadas da sociedade, em meios informais, não escolares. Teve que, muitas vezes, publicar anonimamente seus textos para que não fosse punido.Embora, em muitos casos, se soubesse quem era o autor, o recurso do anonimato era necessário, para manter um regime de aparências.
Voltaire escreveu o Dicionário filosófico que mantém certa similaridade com a Enciclopédia, de Diderot e d’Alembert, no sentido de propor bases racionais para construção e interpretação do conhecimento, que deveria ser apropriado por tantos quantos fosse possível. Percebe-se em Voltaire a forte presença de um objetivo formativo da sociedade como um todo.
Segundo Daniel Pansarelli existe em Voltaire uma nítida crença na capacidade humana de esclarecer-se e de reger-se, ainda que se observe-se na história casos de distorções ou maus usos da democracia: não são problemas da democracia, mas sim do uso instintivo, não racional (portanto não esclarecido) do poder. Voltaire não se ilude quanto à dificuldade de se reger democraticamente um país. Guiar-se pela razão implica colocá-la em posição de dirigir, tanto quanto possível for, os instintos – instinto e razão são dons naturais humanos, e a razão é superior ao primeiro.
Na medida que o ser humano se aperfeiçoa há possibilidade do aperfeiçoamento da democracia. Para Voltaire, o governo dos homens, em esclarecimento, é melhor que um governo despótico, ainda que o déspota seja o próprio Deus.
Outra pensamento importante da época er ao de Jean-Jacques Rousseau, autor da obra O contrato social, na qual afirma que o soberano deveria conduzir o Estado de acordo com a vontade do povo. Somente um Estado com bases democráticas teria condições de oferecer igualdade jurídica a todos os cidadãos. Afirma também que “o homem nasce livre; e em todo lugar está preso”. A sociedade lhe impõe limites, normas de conduta, que podem significar uma indesejável privação de sua liberdade.
Podemos encontrar no Contrato Social referência a dois tipos de liberdade: liberdade natural com a qual todos nascemos; e a outra liberdade convencional, determinada por convenções sociais, necessárias para que possamos viver em sociedade sem estarmos sob o jugo de um modelo de governo fundado na tirania.
Um governo tirano para Rousseau não se justifica e o argumento que ele defende é de ordem jurídica, onde o poder tomado pela força jamais gerará direito ao poder. Aquele que passa a governar por ser mais forte, governará de fato, mas nunca de direito. Segundo Rousseau existe uma distinção entre o governo que cerceia a liberdade e se impõe forçosamente à sociedade e um governo de direito, que tenha por função estabelecer “na ordem civil, alguma regra de administração legítima e segura, tomando os homens como são e as leis como podem ser” (ROUSSEAU, 1999, p. 51).
O argumento construído nessa obra repousa sobre o conceito de “vontade geral”, ou seja, de um lado, dos grupos sociais, os indivíduos são livres para perseguir seus próprios interesses específicos, egoístas. Porém, assim que as pessoas começam a viver em relações fixas com outras pessoas, esse tipo de liberdade é necessariamente restringido. No entanto, existe um modo pelo qual as pessoas podem viver em grupos sociais e ainda permanecerem livres: um contrato social no qual cada indivíduo membro do grupo deve fazer parte do corpo soberano desse grupo. A liberdade, então, consiste em agir de acordo com a “vontade geral” do grupo. Estabelece-se assim a liberdade convencional, onde a condição é igual para todos na medida em que cada um se doa por completo, e sendo a condição igual para todos, ninguém se interessa em torna-la onerosa para os demais.
Resumindo, este tipo de organização social não privaria a liberdade, mas apenas substituiria a liberdade individual, limitada à força física de um único indivíduo, pela poderosa liberdade convencional, em que a força presente é a soma das forças de todos os indivíduos que se alienam, individualmente, em benefício coletivo.
Como vimos, a Idade Moderna foi um período de grande produção filosófica por meio de filósofos denominados modernos e as principais características de seus pensamentos como: Descartes, Bacon, Kant, Voltaire, Rousseau e de vários filósofos que estudaram a organização política das sociedades, mas que não foram citados aqui.
Vimos também que a crença na capacidade do ser humano e a defesa incondicional da liberdade são alguns dos pontos comuns quase sempre defendidos pelos filósofos iluminsitas. O ser humano, ser racional, tem em sua capacidade de raciocinar o elemento necessário para se chegar a bons resultados, boas soluções para seus conflitos de formação pessoal e também sociais. Saber escolher e tomar decisões seriam conseqüências do adequado uso da razão quando esta estivesse mais substancialmente desenvolvida em cada ser.
Percebemos que embora a perfeição não possa ser alcançada, o que não é um consenso entre todos os filósofos da época, o aperfeiçoamento ou esclarecimento é objetivo.



Referências Bibliográficas:


ABBAGNANO, Nicola. História da Filosofia, vol. VI. Lisboa: Editorial Presença, 1970.
KANT, I. Resposta à pergunta: O que é o Esclarecimento?. Trad. Luiz P. Rouanet. Disponível em http://br.geocities.com/eticaejustica/esclarecimento.pdf. Acesso em 11/09/2009.
PANSARELLI, Daniel. Kant e a questão do Esclarecimento. Ed. do Autor, São Paulo. 2009. p. 10 a 12.
________________ . Reflexões primeiras a cerca do Iluminismo francês. Ed. do Autor, São Paulo. 2009. p. 14 a 17.
________________ . O problema da liberdade em Jean-Jacques Rousseau: o livro primeiro do contrato social. Ed. do Autor, São Paulo. 2009. p. 20 a 22.
ROUSSEAU, J.J.. Do contrato social. Trad. Pietro Nassetti. Ed. Martin Claret. São Paulo, SP. 2007.
STANGROOM, Dr. Jeremy. Filosofia, Ed. Ciranda Cultural Editora e Distribuidora Ltda. São Paulo, SP. 2008.


[1] Para esclarecimento Kant utiliza o termo Aufklãrung, que indica a ação de esclarecer (ou de iluminar), mas com destaque ao fato de tratar-se de uma ação. Pode-se entender esclarecimento como sinônimo de Iluminismo.

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